Via Sacra Nordestina
representações do sagrado na xilogravura de Stênio Diniz


Tereza Cândida Alves Diniz
Departamento de História, Universidade Regional do Cariri (URCA)
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Andanças culturais: assim poderia traduzir minhas idas e vindas entre Juazeiro do Norte e o Crato, embora saiba que isso faça parte da rotina de muitos da região do Cariri Cearense que cotidianamente fazem esse percurso por razões variadas, pela proximidade das cidades, dos fluxos constantes das romarias e do desenvolvimento favorecido pela economia crescente da “cidade do Padre Cícero”. (1) Como afirma o professor Gilmar de Carvalho, estudioso da presença da Literatura de Cordel em Juazeiro do Norte:

Juazeiro do Norte é sitiada durante romarias e a metáfora da invasão é militar e também religiosa. Só que no caso dessas romarias não existe um inimigo visível ou declarado, mas muito mais uma ênfase que é dada a fé como salvo conduto para uma dimensão de ascese, purificação e salvação […] Juazeiro do Norte se anula para ganhar a condição de outra cidade, santa […]. Seus acervos são assim, heterogêneos e ricos para os fiéis que com eles se identificam. (2)

Nesse trânsito simbiótico que norteia o fluxo de transeuntes que visitam a cidade de Juazeiro do Norte/CE seja pelas romarias, seja em busca de trabalho, o fato é que existem na região do Cariri cearense peculiaridades que a destacam por suas práticas, especificamente em se tratando da pluralidade religiosa e cultural.

Ao analisar desde o ano de 2003 temas relacionados ao protestantismo em Juazeiro do Norte, bem como suas transformações através de práticas de reapropriação e ressignificação pelo neopentecostalismo atuante na cidade, percebi que a esfera do sagrado permeia toda a vida social, desde uma economia voltada ao turismo religioso através da perpetuação e da construção da figura histórica e mítica do Padre Cícero, características indissociáveis no campo onde sobrevive o mundo da vida, cerceado por práticas e representações que se expressam no mundo das artes.

No presente artigo proponho analisar e refletir como o sagrado emerge e é percebido através de representações na xilogravura produzida em Juazeiro do Norte a partir do trabalho de Stênio Diniz: suas gravuras possuem particularidades que promovem em alguns momentos distanciamentos e narrativas diferenciadas das práticas existentes na religiosidade de Juazeiro do Norte, e em outros momentos elas imergem no universo do mundo na vida do homem do nordeste e sinalizam práticas cotidianas. Nas andanças especificamente para ouvi-lo, pude observar que por trás daquele sujeito de aparência simples e falas extensas existe um artista preocupado não somente com a existência individual, mas também coletiva pela forma como traduz variados temas sociais e culturais em suas xilogravuras.

Stênio Diniz é natural de Juazeiro do Norte, filho de Maria de Jesus Diniz e neto do editor José Bernardo da Silva, antigo proprietário da tipografia São Francisco, fundada nos anos 30 e responsável por quase toda produção de cordéis da região no passado. Posteriormente ao ser adquirido pelo Governo do Estado do Ceará em 1982, passou a ser denominada de Lira Nordestina, nome sugerido pelo poeta Patativa do Assaré. Na Lira Nordestina são confeccionados trabalhos diversos como xilogravuras, folhetos de cordel e uma série de objetos artísticos. Não é difícil relatar a forma como seu trabalho destaca-se, do ponto de vista de uma estética singular e numa visão cosmológica de perceber diferentes maneiras de traduzir o sagrado, o cotidiano, a vida.

Nossa primeira entrevista ocorreu na sua residência, que na verdade é seu atelier, permeado por objetos rústicos, sem nenhum conforto para um homem de sessenta anos, mas de um espaço historicamente construído em torno de sua identidade e de seu talento e por que não dizer habilidades que refletem as inquietudes de um artista.

Stênio Diniz, assim é um homem de andanças, coleciona viagens e exposições pela Europa, já expôs na Alemanha, França e possuí trabalhos espalhados pelo circuito da intelectualidade europeia. O título de Mestre da Cultura foi outorgado pelo Governo do Estado do Ceará como reconhecimento pelo seu trabalho, para evitar justamente o que ocorreu com o Mestre Noza (3) e outros artistas que anos depois de seu falecimento foram reconhecidos pelo conjunto da sua obra. Passeia na arte erudita de Van Gogh e Portinari como discorre na sua Via Sacra nordestina, levando-nos a refletir sobre os limites da criação do homem. Seu valor estético está na sutileza dos traços e nos detalhes sofisticados que aparecem em suas obras e não puramente no que pode ser considerado feio ou bonito. Seu conceito de beleza está em alcançar a forma da “excelência técnica”, isso é o que o singulariza e personaliza a sua arte.

Foi com capas de folhetos de cordel que Stênio Diniz, na década de 1970 começou o seu trabalho, de início cerca de 150 capas de folhetos, (4) logo depois foram produzidas xilogravuras em trabalhos maiores, embora seja importante destacar que não se sabe quantas xilogravuras existem na atualidade da composição de sua obra que aborda temas sociais variados, fontes importantes para uma pesquisa historiográfica. Para realização desse artigo utilizo como fontes 26 xilogravuras de temas relacionados ao tema “Sagrado”, (5) sendo que pela abrangência e complexidade da obra, escolhi neste artigo três xilogravuras: “O Espírito Santo está dentro de você”, a X e a XII xilos do álbum Via Sacra Nordestina , (6) que serão no decorrer desse artigo analisadas.

A preocupação em estreitar uma relação acadêmica tendo como objeto de estudo a iconografia na capa de folhetos da literatura de cordel, surgiu a princípio da curiosidade de analisar as xilogravuras nas capas de cordéis e por compreender a importância desses artefatos como representação cultural dos indivíduos. Outro fato foi a inquietação concernente aos poucos trabalhos desenvolvidos com análises das imagens relacionados ao sagrado. Importante considerar que temos duas dissertações de mestrado na região do Cariri Cearense, uma sobre o discurso religioso na literatura de cordel (7) e outra sobre a xilogravura de Walderêdo Gonçalves. (8) Ambas discutem a relação da xilogravura com o cordel numa perspectiva literária e não historiográfica. Vale salientar que dentre esses o maior acervo de livros escritos sobre xilogravura é do professor Gilmar de Carvalhoda UFC/CE. (9) Numa primeira análise é possível constatar que a produção da xilogravura de cunho religioso no Juazeiro do Norte tem um espaço ampliado quando se trata da variedade de temas, embora persista a continuidade da sagração do Padre Cícero.

Ao explicitarmos como ocorre o processo de criação das xilogravuras, seu alcance e suas especificidades, além de considerarmos relevante sua construção enquanto arte, é imprescindível sua divulgação, pois embora a xilogravura seja considerada historicamente como “popular” e vista como tal, é também uma forma de expressão, de transformação que transita entre distintos universos culturais.

Maria Lúcia apresenta etimologicamente a palavra, derivada do grego “xylographeo”, ou seja, “eu escrevo sobre a madeira” em alusão a técnica de impressão em relevo na madeira. (10) Em referência a xilogravura “popular” emprega, regularmente, a técnica da xilogravura a fio. (11) Gilmar de Carvalho no livro Madeira Matriz, leva-nos a refletir sobre “Onde estaria o espírito das árvores”. E complementa, “o espírito está na possibilidade de o artista dialogar com ela e ouvir sua resposta no silêncio da superfície prestes a ser ferida, antevendo as marcas da criação”. (12) Considero ser essa a primeira manifestação do “sagrado”.

O fato é que na fabricação de uma prancha xilográfica, termo utilizado por pesquisadores para designar a placa de madeira, é empregada aparentemente mais uma técnica artesanal, embora sua transformação em objeto artístico carregado de significações represente muito mais que um simples corte na madeira, pois “a xilogravura nordestina tornou-se uma das expressões artísticas mais criativas das artes plásticas brasileiras”. (13) Sua importância reside no fato de que traduz experiências de uma época formando um conjunto de símbolos que permitem um diálogo com culturas equidistantes.

O trabalho da xilogravura no Cariri perpassa fronteiras culturais e ideológicas quando promove a universalização e proximidades de povos através das artes. Sua singularidade reside no fato de que as artes alegram os povos e despertam sentimentos de pertencimento e de identidade, daí seu alcance, sem esquecermos que se constitui como fonte de sobrevivência para gerações de artistas que há um século vivem deste ofício.

Da China, para o Juazeiro do Norte, a arte de esculpir em madeira, que começa com desenhos em “Nanquim” (14) já insistia em aportar na “Meca nordestina”. (15) “A xilogravura (16) é esta técnica milenar, (17) cujas raízes se perdem no tempo e no espaço, passa pela China, é retomada na Europa quinhentista e desemboca no Brasil três séculos depois”; (18) chega ao Ceará com a implantação da imprensa régia em 1826, aporta em Juazeiro do Norte a partir de 1949, quando José Bernardo da Silva, em sua tipografia São Francisco começa a imprimir folhetos em larga escala.

Para explicar o surgimento da xilogravura popular brasileira “supõe-se que esta técnica apareceu em consequência da implantação e do desenvolvimento da tipografia no país”, (19) cujas imagens mais antigas remontam às que aparecem publicados no jornal O Diário, datados do dia 02 de agosto de 1822 (anúncio de moinho de vapor de farinha e arroz) e na edição de 10 de fevereiro de 1824 (um tonel de vinagre).

No entanto sua origem remonta desde a Idade Média quando se difundiu a gravura:

Mesmo antes de Johann Gutemberg inventar a imprensa, nos livros manuscritos havia o destaque para os ilustradores. No Japão, no século VI já se imprimia xilograficamente por processos originários da China, levados por monges budistas. Os monges já imprimiam estampas de santos, utilizando a técnica de xilogravura, com pequenos textos […] Na Alemanha, essas reproduções eram chamadas de “hilligen” e proliferaram bastante entre as massas analfabetas da Europa, muito antes de 1423, data da xilogravura mais antiga que se conhece. É um São Cristovão estampa conservada em Manchester. (20)

Em Juazeiro do Norte/CE, a importância da xilogravura traduziu algumas características que implicariam sua permanência como novas formas de fazer as capas de cordel, em detrimento das gravuras que eram feitas em zinco, também conhecidas como “clichês” e fabricadas nos jornais de grandes centros urbanos.

Carvalho afirma que a “xilogravura se impôs em função de o processo editorial exigir agilidade” (21) ou seja pela necessidade de rapidez na entrega. No entanto, em função de os clichês com títulos e propagandas virem de cidades mais distantes como Recife e Fortaleza, chegando a demorar mais de uma semana, muitas vezes atrasava o processo e a crescente demandada. Daí a importância de se criar alternativas que viabilizassem a produção de matrizes que substituiriam as placas de metal por madeira, ficando assim mais acessível às necessidades, inclusive econômicas, já que se barateavam os custos de produção.

Para a crescente demanda e o barateamento da produção de imagens para os folhetos, surge um elemento diferenciador, o xilógrafo, o artista da madeira, ou seja, a própria necessidade faz emergir – “o gênio popular fez arte”. (22) A iconografia na xilogravura “popular” é caracterizada comumente pela produção de imagens religiosas. As representações que emergem na xilogravura de Juazeiro do Norte são marcadas no mundo do cotidiano pelo forte apelo religioso. Os aspectos da vida social exalam elementos do sagrado, especificamente em Juazeiro do Norte, onde quase todos os xilógrafos já produziram suas Vias Sacras, anjos, santos, lapinhas, penitentes, altares, igrejas. Paralelamente a esse mundo do sagrado convivem imagens dualísticas que evocam o profano, como se houvesse uma ponte estreita entre o “céu” e o “mundo das trevas”. Sobre os temas na gravura popular Iglesias afirma que:

A xilogravura popular surpreende pela variedade de motivos, personagens e situações, desde o Cristo crucificado até a figura dançante de uma “prostituta chegando ao céu”. Em geral pode-se dizer que a gravura popular nordestina concentra temas de religiosidade (como episódios da vida de Cristo, cenas bíblicas, vida de santos e de Nossa Senhora), assuntos que ilustram as atividades cotidianas do homem nordestino, temas de cangaço (onde se destaca a figura de Lampião), bestiários (nos quais aparecem os bichos com função simbólica ou alegórica como as personagens centrais), temas do maravilhoso e fantástico que mostram seres mitológicos (onde se destacam, por exemplo, o dragão, o lobisomem, a besta do Apocalipse) e muitos outros que abordam acontecimentos da atualidade, personalidades e notícias importantes. (23)

O xilógrafo concebe seu trabalho aliando assuntos da vida cotidiana. Misturam-se ao mundo do imaginário do sagrado numa constante migração, fazendo acontecer na arte suas intranquilizações, diferenciando-se em suas representações.

Em busca de um método de fazer história, ou “afirmar que a História estabelece regimes de verdade, e não certezas absolutas”, (24) não seria correto pensar que qualquer escrita tenha a quimera ou fantasia de estabelecer regimes de verdades, mas propor um diálogo onde é possível compreender como se dá o processo de representações do sagrado através da xilogravura de Stênio Diniz:

Representar é, pois, fundamental, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo que dá a ver uma ausência. A ideia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença […] não é uma cópia do real […] são portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que, construídos social e historicamente, se internalizam no inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexão. Há no caso do fazer ver por uma imagem simbólica, a necessidade da decifração e do conhecimento de códigos de interpretação […] as representações se inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade. (25)

Dentre as variadas maneiras de captar o não dito ou compreender uma representação, lanço mão de imagens xilográficas por compreender que as imagens estão carregadas de arquétipos, símbolos, ideias, experiências, indícios, expressão da cultura humana. Penso que não haja imagem que primeiro não tenha sido gerada na mente do artista. “Do mesmo modo que não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais”, (26) nelas os homens traduzem e se traduzem, metamorfoseiam a ordem vigente, transformam-na de outras maneiras e fazem-na acontecer. Mas chama a atenção o fato de que o que vemos é uma imagem traduzida nos termos da nossa própria experiência, imbuída de desejos, sentimentos, sonhos.

Alberto Manguel (27) convida-nos a refletir sobre a necessidade de uma leitura mais instigada das imagens:

Leituras críticas acompanham imagens desde o início dos tempos, mas nunca efetivamente copiam, substituem ou assimilam as imagens. “Não explicamos as imagens”, comentou com sagacidade o historiador de arte Michael Baxandall, “ explicamos comentários a respeito de imagens”. “Se o mundo revelado em uma obra de arte permanece sempre fora do âmbito dessa obra, a obra de arte permanece sempre fora do âmbito da sua apreciação crítica”. (28)

A escolha da xilogravura permite um universo de possibilidades por combinar elementos do imaginário, aqui compreendido como sistemas de ideias e representação coletivos dos homens (29) e a capacidade humana para representação do mundo. O artista se representa na sua arte, e obviamente falar de arte não é fácil, “a arte parece existir em um mundo próprio, que o discurso não pode alcançar”. (30) Isso se traduz pelas variadas leituras conceituais que surgem a todo instante de obras clássicas ou não, pelo simples fato de que a arte na contemporaneidade é algo subjetivo e ao mesmo tempo recai no mundo da relatividade conceitual: “A imagem é, portanto, para o historiador, ao mesmo tempo, transmissora de mensagens enunciadas claramente, que visam a seduzir e convencer, e tradutora, a despeito de si mesma, de convenções partilhadas que permitem que ela seja compreendida, recebida, decifrável”. (31) Em se tratando do trabalho de Stênio Diniz, é algo a se analisar, pois “Stênio tem o dom de surpreender”, (32) o artista se define como um ser “mágico” ao mesmo tempo em que diz “o desenho é uma poética, na escrita você pode dizer eu peguei na lua, então na gravura, eu posso fazer uma figura, pode pegar na lua, no sol, pode remir as estrelas com as próprias mãos”. (33) O artista transita em seu próprio universo, virou um traço característico seu, alcançar o inalcançável.

Nestor Gárcia Cancline enfatiza sobre a condição dos artesãos e sua constante associação ao pré-moderno e ao subsidiário como categorias inferiorizadas:

O popular é nessa história o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja reconhecido e conservado; os artesãos que não chegam a ser artistas, a individualizar-se, nem a participar do mercado de bens simbólicos “legítimos”; os espectadores dos meios massivos que ficam de fora das universidades e dos museus, “incapazes” de ler e olhar a alta cultura porque desconhecem a história dos saberes e escritos. (34)

O mesmo categoriza que é preciso que se perceba a existência de uma preocupação mais relacionada com os bens culturais produzidos por esses artesãos através da repetição artesanal, que com as transformações ocorridas durante seu processo, levando-os a uma constante desvalorização na sua fabricação.

Cancline afirma que o popular não se concentra nos objetos […] a arte popular não é uma coleção de objetos, nem a ideologia subalterna um sistema de ideias, nem os costumes repertórios fixos de práticas: todos são dramatizações dinâmicas da experiência coletiva. (35)

Nesse aspecto, pensar o popular nos objetos equivale a não levar em consideração as teias discursivas que dão sentido aos interesses dos grupos envolvidos. Logo, o próprio conceito de popular silencia a ação criadora das representações do artista, estereotipa-o, categoriza-o como pessoa simples, sem cultura, sem acesso ao erudito, pré-fabricada, imbuída de juízos de valores constituindo-se numa armadilha ideológica.

Neves alerta para a necessidade de novas interpretações acerca das antigas abordagens concernentes a estética, e a história da arte ocidental:

A noção folclorizante é identificada como uma ideologia estética tradicional a ser superada, pois se trata de uma visão elitista que parte do pressuposto que existe uma arte “normal, verdadeira, não popular” que seria capaz de distinguir, classificar e finalmente, julgar as produções artísticas produzidas fora daquilo que ela mesma produziu e codificou. (36)

Esta visão da arte deve ser superada pela própria personificação da arte enquanto objeto da criação do homem sujeito de uma complexa produção simbólica. Rosilene Melo (37) esclarece que:

A visão folclorizante estabeleceu uma clivagem irreconciliável entre o objeto único – a peça de arte culta – e a reprodução, característica da arte popular, esquecendo que a reprodução e a reprodutibilidade são características da arte considerada pelos críticos e pelos artistas como contemporânea e de vanguarda. Marcadamente etnocêntrica, este olhar para a produção estética do outro confundiu alteridade com inferioridade. (38)

No mais é importante registrar que nessa perspectiva o termo “arte popular” estabelece espontaneidade do ato criativo. Essa criatividade transita daquilo que é considerado “popular” para o “erudito” e vice-versa, o que requer um olhar diria mais sensível no mundo das suas imagens.

No entanto faz-se notório citar algumas xilogravuras que considero como imprescindíveis para categorização das especificidades em torno da obra de Stênio Diniz, que serão posteriormente utilizadas como objeto de estudo. Neste artigo organizei as gravuras numa sequência de análise considerando a presença de elementos do surrealismo, preocupação com a estética, traços de Van Gogh, o romeiro e o Padre Cícero, a bricolagem em torno da fé, a composição do álbum “Via Sacra Nordestina” e o reconhecimento da sua obra internacionalmente na Alemanha, inclusive por uma igreja evangélica da Inglaterra que adquiriu um dos seus trabalhos para compor a capa de um manual da igreja, tudo isso misturado a uma criatividade ímpar do ponto de vista da arte da xilogravura.

Para análises sistematizadas dessas imagens buscando trazer o dito e resgatar o não dito, conceituando as ideias de Stênio Diniz sobre o “sagrado”, sem perder de vista sua singularidade, dialogamos com os teóricos Carlo Ginzburg através do conceito de circularidade cultural, e Aby Warburg onde as imagens não são apenas traduções de objetos, mas ações, reflexos, e construções de olhares. Além das xilogravuras analisadas, entrevistas com o xilógrafo e pesquisas bibliográficas específicas foram primordiais para a produção da pesquisa.

É difícil traduzir em palavras as diferentes sensações que experimentei ao me deparar com esse primeiro trabalho, analisando-o através da leitura da imagem, ou porque não dizer imagens. A priori minha intenção era fazer apenas uma apreciação das variadas representações do sagrado na xilogravura de Stênio, mas como traduzi-las, como compreendê-las já que o mesmo se diz “um mágico”? Franklin Maxado define Stênio como “irrequieto e em busca de novos conhecimentos”:

Ele viaja sempre e desenvolve sua técnica e experimenta instrumentos mais sofisticados que se refletem em suas obras. Procura uma erudição, fugindo dos limites das capas unicolores dos folhetos de cordel. Aborda temas mais eruditos também. Desenvolveu-se tanto que nem na sua tipografia era mais entendida, daí sua mãe preferir encomendar ilustrações a outro artista, “o velho”. (39)

      diniz1
O Espírito Santo está dentro de você, Stênio Diniz, xilogravura. Acervo particular


Ao ser abordado em sua obra O Espírito Santo está dentro de você, onde estaria a presença do sagrado, Stênio ressalta que:

Meu trabalho pode ter essa “conotação realista” […] embora eu possa até dizer não surrealista, mas realismo mágico, é como eu coloco porque sou “realista”, ele o artista, ele tem que ser, a pessoa dele tem que ser surrealista, para a obra também ser, sou extremamente realista.
Se coloca uma distância muito grande quando a gente fala do Espírito Santo, é como se falar de Deus, é como se Deus não estivesse aqui, o Espírito Santo está longe […] você não precisa estar a procura do Espírito Santo, a manifestação, esta dá-se através de suas ações, se você faz uma ação má com certeza absoluta, o “Espírito Santo” está absorvido pelo mal, “ele” não tá podendo atuar, você fez uma coisa de caráter social, você está sendo guiado pelo Espírito Santo que está dentro de você. (40)

Nota-se que a presença do sagrado é real e está continuamente mais próxima que o imaginado, configura-se numa proximidade na qual não há a necessidade de uma instituição ou liderança que faça essa mediação entre o sagrado e o humano, existe uma valorização da pequena dimensão. Esse espaço pode ser uma comunidade, um lar, uma tela, uma xilogravura, uma imagem, onde apenas uma boa “ação social” tornará possível uma aproximação do numinoso.

No seu livro Mercado e Religião, François Houtart chama a atenção para uma nova forma de perceber a religião na visão pós-moderna: “O local, o imediato são o valor por excelência da dimensão religiosa. Adverte-se que mesmo nas grandes religiões existe, hoje em dia, uma identidade religiosa particular”; (41) em caso de não se aceitar a normatividade das formas tradicionais de se exercer tais práticas, tornam-se necessários novos procedimentos, qualquer lugar constitui-se lugar de aparição. No caso da imagem, a presença do “Espírito Santo” é refletida dentro do espaço da “casa”, onde existe uma aproximação real. E por mais que exista um controle doutrinário de ritos e práticas pelos guardiões desses ritos “oficiais”, as formas expressivas da religião na contemporaneidade assumem características individuais e particulares que permitem a vivência de suas práticas com outras formas. Dessa maneira, o artista no ato da sua produção assume um caráter de liderança ao mediar através da sua xilogravura a proximidade entre o homem e o mundo do sagrado.

Até agora a única forma corpórea assumida pela imagem do “Espírito Santo” está no desenho refletido no centro e alto da tela, além, é claro, da entrevista acima transcrita. Ao descrever a imagem do pássaro como símbolo, Stênio nos dá novos indícios do seu trabalho: “Van Gogh, ele entra pra mim, na (sic), onde tem esses pássaros voando na parte superior, é esse movimento buliçoso, como se diz agitado, não é denso, tá em ritmos de agitação”. Em outro momento, Stênio fala que o grande pintor holandês foi quem o inspirou a fazer “esses traços finos e definidos”, bem como Portinari. Inclusive “fiz um auto-retrato de Van Gogh, copiado dele mesmo, para me sentir bem” (42) e esse “céu buliçoso” será visto também na Via Sacra.

Primeiro é preciso levar em consideração que a “imagem do pássaro” é apenas um detalhe da obra, na verdade pouco se falou sobre “ele”, o que antes foi pensado como sendo a presença personificada do Espírito Santo. No entanto é preciso que se diga que um detalhe reside no fato de que a gravura foi realizada por um xilógrafo inspirado numa arte europeia vangoghiana, que é capaz de cruzar um oceano e aportar numa cidade do Carirense Cearense, no caso Juazeiro do Norte. Este artigo não tem a pretensão de enunciar um “novo Van Gogh”, mas encontrar indícios desses elementos em obras que de ingênuas nada têm. Pelo contrário, o artista diz a que veio, circula no erudito, estabelece “traços”, vê-se no outro, procura seus pares.

Coli, (43) ao escrever sobre Van Gogh, descreve que seguir sua trajetória é “confrontar-se com o extraordinário e o inexplicável”, embora seus primeiros trabalhos não tenham sido suficientes para justificar uma transformação que posteriormente aconteceria com sua obra. Na tela “Noite estrelada” (1889), Van Gogh retrata uma noite estrelada, permeada por ciprestes e pela aldeia, cujo céu revela traços em movimentos, tais como os encontrados na xilogravura de Stênio.

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A noite estrelada, Van Gogh (1889), 95x73 cm (Nova Iorque, Metropolitan Musem of Arte).

Coli nos convida a “esquecermos as interpretações simbólicas, místicas ou religiosas que já foram feitas desse quadro”, e nos atermos a “outra dinâmica, tomada de movimentos inesperados reveladora de uma alma cósmica, jubilante e férica”. O que ela tem de instigante é o “céu buliçoso” que parece estar em movimento, o que será percebido em várias de suas obras, embora seja preciso levar em consideração alguns distanciamentos. O quadro de Van Gogh retrata uma noite com “cores” na cidade de Arles, (44) enquanto Stênio retrata o dia em “preto e branco”, tolhido na madeira ao suor escaldante de um dia quente que se movimenta no teto da casa na xilo “ O Espírito Santo está dentro de você” e no alto da cabeça do “Cristo” da Via Sacra. São encontrados nesses indícios traços circulares, oblíquos, verticais, no interior desse mundo ordenado do artista.

Há outro aspecto a ser considerado: o que existe de universal, por assim dizer no particular? O diálogo com o conceito de “circularidade cultural” presente na obra do historiador Carlo Ginzburg nos permitiu perceber a existência de elementos culturais que são comuns em diferentes classes sociais que convivem em realidades históricas culturais ou mesmo distanciadas pelo espaço e pelo tempo. E ao mesmo tempo pensarmos um método que nos ofereça sinais e vestígios, no caso o “paradigma indiciário”: “trata-se de formas de saber tendencialmente mudas – no sentido de que, como já dissemos, suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas”, para compreender essas representações. Em O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, Ginzburg trabalhará com afinco sobre esse conceito: “O termo circularidade cultural: entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo”. (45) Essa abordagem possui uma situação de ampla complexidade, pois em Stênio encontram-se vários objetos comuns do cotidiano presente nas residências do homem no Nordeste, como a “lamparina”, “armadores”, “rede”, ao mesmo tempo numa simbiose, num fluxo criativo, surge o erudito, traços “vangorescos” como ele denomina, e que na sua concepção representa a “ideia”. O movimento circular que é produzido pelo pincel em Van Gogh, é realizado pelo xilógrafo através das escavadas na madeira pela goiva (46) do artista,

essa pessoa aqui que puxa os azulejos na imagem que permite ao mesmo tempo a uma pessoa pegar (sic) os azulejos como uma folha de papel, conseguiu arrancar lá de baixo e fez um ato criativo. Aquele elemento de baixo e jogar em outro plano […] você cria, a partir dessa coisa de criatividade, luz dos elementos, você cria, o armador pega plasticidade, e aquele lado ali como alegoria, o estético, uma florzinha. (47)

Isso reflete como transitam vários elementos culturais que são comuns nas diferentes classes, em espaços equidistantes e realidades históricas adversas.

Para Ginzburg esse cruzamento entre correntes cultas e populares foi possível com a invenção da imprensa responsável pela socialização da palavra, antes monopolizada pela cultura escrita evidenciando a importância das trocas de níveis culturais e a riqueza de entendê-las: O historiador afirma que, “era através das imagens que se travava a relação circular entre culturas diferenciadas […] vê na imagem um elemento que colaborará ainda mais com a palavra impressa para intercâmbio entre culturas”. (48)

É perceptível como Stênio tem o prazer em citar Van Gogh como um de seus inspiradores. Penso que os vínculos estabelecidos entre Juazeiro do Norte e a Europa permitiram essa conexão e estreitaram as distâncias, traduzidas na iconografia xilográfica, arte da sua expressão, e um dos instrumentos propiciadores dessa aproximação, sem descartar, é claro, leituras sobre o artista.

Outro indício a ser considerado é uma possível “insatisfação” do artista (Stênio) quanto a formas anteriores de representação do sagrado, fazendo surgir a necessidades de objetos de uso do cotidiano que modificassem a paisagem, uma nova maneira de fazer, transformando-o num cenário doméstico mais próximo a realidade, numa evocação de trazer o sagrado para perto.

Esse processo de “humanização do divino” acontece na primeira xilogravura analisada, quando são detectados vários objetos da realidade do artista num cenário considerado religioso, dentre eles “a mulher deitada na rede”, sua atual companheira, e “musa Ivete”, cuja descrição feita pelo autor remete a personificação da paz num elemento considerado sagrado, simbolizado na figura de uma mulher. Ao narrar sobre Ivete, Stênio relata: “tudo pode estar desabando, ocorrendo, mas ela é a calmaria em pessoa”, a “mulher” em Stênio direciona o olhar para o artista, transcende, diviniza-se.

Nos termos colocados pelo historiador da arte Aby Warburg (1866-1929) de que “Deus habita no particular”, o papel da obra de arte no seu pensamento, não é o do objeto passivo a ser contextualizado na cultura a partir de uma relação fixa, pois se tudo é movimento, é criação, faz-se necessário resgatar a arte como centro da existência humana e de sua cultura. Para ele, “a imagem não é algo que ilustre o pensamento, mas que o provoca a sair de si mesmo, a partir”; sua obra é importante na medida em que a compreendamos como “ uma ciência mais vasta, sem nome”, algo que ele próprio jamais pôde nominar, mas trabalhou no sentido de configurar. Como historiadora não poderia deixar de pensar as representações culturais através das imagens xilográficas, e trazê-las a reflexão para compreendê-las. Esse deslocamento é possível na obra de Stênio pelas inúmeras possibilidades de seu ato criativo, que transita em universos distantes e equidistantes, estreitando laços na dimensão entre a arte na cultura e cultura da sua arte.
Agamben (49) reflete que “a posição da imagem, entre arte e religião, é importante para fixar o horizonte de sua busca: seu objeto é a imagem mais do que a obra de arte, o que a coloca decididamente fora das fronteiras da estética”. Importante refletir que ao analisarmos essas imagens, percebemos como determinados elementos se metamorfoseiam nos dois planos, se para Warburg “a iconografia nunca é um fim em si mesmo”. Portanto, é necessária uma abordagem da imagem da forma mais profunda possível. Pois Stênio Diniz labuta em transformar uma solução em enigma. Esta pesquisa tornou-se uma tarefa quase exaustiva, pois a cada intervalo de busca, me deparo com um elemento novo.

Na X Via Sacra permanecem os traços “vangorescos”, mas aparecem outros elementos que os distinguem dos demais que também produziram suas Via Sacras, com exceção do Cristo de Abraão Batista, (50) que assim como o de Stênio também aparece nú. Importante levar em consideração como o “Cristo” de Stênio tem uma aproximação com sua realidade, o mundo da vida, do sertão nordestino, um Cristo que retrata a fome expressada por um corpo marcado por curvaturas de ossos, tendões, e uma mão tímida que parece encobrir suas vergonhas. Num segundo plano (à esquerda) o sagrado bíblico tradicional, à direita o cenário do nordeste, mandacarus, pedras, terra seca, sem plantação, fazendo ressurgir um elemento típico marcando o cenário – um “urubu” a espreita do alimento para saciar sua fome.

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X Via Sacra, Stênio Diniz, xilogravura

E por último a XII Via Sacra, cuja importância reflete o teor da sua obra, visto ser dentro do contexto do tema do sagrado. A xilogravura analisada retrata a crucificação do Cristo, numa perspectiva quase que tradicional, se não fora a permanência dos elementos nordestinos como a seca, os dois cactos, as pedras e pelo aspecto do “soldado romano”, cujas vestes refletem a parceria entre o artista e os traços existentes na madeira: são “sinais, vestígios, indícios”, prefigurações da própria madeira que num ímpeto, num fluxo com o sagrado parecem surgir para compor a obra.

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XII Via Sacra, Stênio Diniz, xilogravura


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Frente e verso do Manual Teológico, (51) do evento “A Teologia Presbiteriana e a democracia participativa na África em 1988”

No âmbito da arte da xilogravura, são diversificadas as temáticas utilizadas por Stênio.

Nosso interesse pela temática do sagrado reitera sua relevância para a Região do Cariri Cearense, especificamente na cidade de Juazeiro do Norte/CE, onde a fé está relacionada com a religiosidade em torno da figura emblemática do Padre Cícero. Dentre sua iconografia, cataloguei apenas três imagens, considerando-as como relevantes e distintas pelo seu alcance. Embora tenha várias imagens xilográficas com a imagem do Padre Cícero, nesse artigo não utilizei nenhuma dessas imagens, lembrando que é do meu interesse dar continuidade a pesquisa, cujo objeto requer tempo, e aprofundamento na análise.

Concluímos então que as representações do sagrado construídas por Stênio Diniz pertencem ao seu universo distinto. Na xilogravura “O Espírito Santo está dentro de você”, o sagrado é representado numa casa onde habita a simplicidade, harmonia, amor, a bricolagem das crianças, ordem/desordem, mas, ao mesmo tempo possui objetos do seu dia a dia, do mundo do seu cotidiano. Não se trata de perceber o mundo como algo natural, mas de percebê-lo como refletor de códigos, mediações, por vezes fora da representação tradicional que muitas vezes se traduz através de altares, imagens de santos, velas, terços, penitente.

Cada espaço da madeira tolhida é sagrado, constitui-se de elementos distantes/próximos, mas possui conexão, tem seus olhos, pássaros, quadros, gaiolas, azulejos, rede, armadores, lamparinas, peixe, enfim não deixa de ser sagrado; embora transmutado, constitui-se representação do mundo com outra forma. O espírito de Stênio habita no mundo do “Espírito Santo…”, ele está dentro dele mesmo personificado na madeira, “não precisa ir tão longe”.

Reflexo de uma longa história do seu olhar, Stênio prossegue na sua “Via Sacra”, numa terra seca, árida, pedregosa, exibindo no corpo do seu Cristo uma leitura quase caricatural do homem do nordeste, porque não ele mesmo, embora sem desistir, apesar de sentir e esconder suas “vergonhas”. Logicamente, Stênio assim como os demais artistas, ressignificou sua Via Sacra de maneira que qualquer um que a veja, como num espelho, se perceba refletido, sacralizado no seu objeto artístico, “morto no Gólgota na sua XII Via Sacra”, depois ressurgido e particularizado na sua obra, em suas muitas facetas “irrequieto”, mutante, na pessoa de um “mágico”, o que de fato ele é.

 

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Entrevistas

Stênio Diniz, Juazeiro do Norte, 23 de janeiro de 2009. Depoimento concedido a Rosilene Alves de Melo.

Stênio Diniz, FJuazeiro do Norte, 24 de Maio de 2014.


Notas


(1) Termo utilizado pela professora Maria de Lourdes Araújo em sua Tese de Doutorado intitulada A cidade do Padre Cícero: trabalho e fé, em alusão a como os romeiros se referem à cidade de Juazeiro do Norte. Padre Cícero Romão Batista – líder religioso católico e primeiro prefeito da cidade de Juazeiro do Norte/CE. Afastado das ordens eclesiásticas pela Igreja Católica Romana, mas considerado santo pela população e por demais visitantes de outras regiões que se consideram romeiros devotos, desde 1889 quando ocorreu o fenômeno da hóstia envolvendo a beata Maria de Araújo.

(2) G. de Carvalho, Madeira Matriz: cultura e memória (1ª ed.), São Paulo, Annablume, 1998, p. 89-95.

(3) Inocêncio da Costa Nick conhecido também como o Mestre Noza, foi o primeiro xilógrafo nordestino a expor seu trabalho na Europa. Considerado um dos mais importantes no ramo da xilogravura. Também produziu sua “Via Sacra”, uma encomenda do artista plástico cearense Sérvulo Esmeraldo.

(4) G. de Carvalho, Memórias da Xilogravura, Fortaleza, Expressão Gráfica, 2010, p.177.

(5) Pertencem ao meu acervo particular 17 xilogravuras e 9 capas de cordéis. Para continuidade da pesquisa, tenho catalogado cerca de 135 xilogravuras entre capas de cordéis e xilos, somente relacionados ao tema sagrado.

(6) A primeira “Via Sacra” foi feita pelo Mestre Noza, encomendada pelo também artista e xilógrafo Sérvulo Esmeraldo. Seu álbum foi editado em Paris. A Via Sacra nordestina de Stênio Diniz compõe-se de 15 gravuras. Quase todos os xilógrafos de Juazeiro do Norte possuem sua “Via Sacra”, sendo que cada uma delas possui suas peculiaridades e distinção.

(7) C. R. Pinheiro Grangeiro, O Discurso Religioso na Literatura de Cordel de Juazeiro do Norte, Crato, A Província edições, 2002.

(8) J. Temóteo, A xilogravura de Walderêdo Gonçalves no contexto da cultura popular do Cariri, João Pessoa, A Província edições, 2002.

(9) Livros: Madeira Matriz: cultura e memória (1998), Desenho gráfico popular (2000), Xilogravura: doze escritos na madeira (2001), Memórias da xilogravura (2010).

(10) M. L. Díaz Iglesias, Xilogravura Popular Brasileira: Iconografia e Edição, 1992, p. 223. Dissertação (Mestrado em Comunicações, Jornalismo e Editoração), Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

(11) Existem dois tipos de xilogravuras, a fio (madeira deitada ou madeira à veia, onde é utilizado um taco fabricado a partir de um pedaço de madeira, cujo corte se faz paralelamente às fibras das árvores) e a xilogravura de topo (ou madeira de pé, feito corte transversalmente), sendo que a xilogravura popular emprega, regularmente, a técnica da xilogravura a fio. Ibid., p. 41-42.

(12) G. de Carvalho, Madeira matriz: cultura e memória (1ª ed.), São Paulo, Annablume, 1998., p.37.

(13) Ibid., p.1.

(14) Nanquim – surgida no séc. V a.C, era uma tinta a base de carvão, vastamente utilizada em desenhos na arte popular de desenhos chineses.

(15)“Meca nordestina” é um termo utilizado pelo Professor Gilmar de Carvalho sobre Juazeiro do Norte/CE, em referência a “invasões de romeiros” que visitam a cidade no período das romarias.

(16) A xilogravura, ou arte de gravar em madeira, é de provável origem chinesa, sendo já conhecida desde o século VI. No Ocidente ela se afirma durante a Idade Média, através de iluminuras e confecções de baralhos, apenas como técnica de reprodução e posteriormente como manifestação artística em si.

(17) C. R. Pinheiro Grangeiro, op. cit., p. 138.

(18) G. de Carvalho, Xilogravura: doze escritos na madeira, Museu do Ceará, Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001, p.22.

(19) M. L. Díaz Iglesias, op. cit., p. 5.

(20) F. Maxado apud J. Temóteo, Cordel: xilogravura e ilustrações, Rio de Janeiro, Codecri, 1982, p.11-37.

(21) G. de Carvalho, Memórias da Xilogravura, op. cit., p.18.

(22) W. Benjamin apud M. L. Diaz Iglesias, op. cit., p. 6.

(23) M. L. Díaz Iglesias, op. cit., p. 80.

(24) S. J. Pesavento, Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em história cultural, Porto Alegre, Asterisco, 2008, p. 51.

(25) Ibid., p. 40-41.

(26) L.Santaella, N.Winfried, Imagem: cognição, semiótica, mídia (1ª ed.), São Paulo, Iluminuras, 2012, p.15.

(27) Alberto Manguel é ensaísta, organizador de antologias, tradutor, editor e romancista. Preocupa-se em resgatar a importância de espectadores “comuns”, a responsabilidade e o direito de ler imagens e suas histórias. O livro traz uma coletânea de obras de arte famosas como Van Gogh, Joan Mitchell, Pablo Picasso, Robert Campin, Aleijadinho, Caravaggio e outros.

(28) A. Manguel, Lendo Imagens, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 29-30.

(29) S. J. Pesavento, Op. Cit., p. 43.

(30) C. Geertz, “A arte como sistema cultural” em O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa, Petrópolis, Vozes, 1997, p.142.

(31) R. Chartier, “Imagens” em A. Burguière (org), Dicionário das Ciências Históricas, Rio de Janeiro, Imago Ed., 1993, p.407.

(32) G. de Carvalho, Madeira Matriz, op. cit., p.175.

(33) S. Diniz. Juazeiro do Norte, 24 de Maio de 2014 – Entrevista.

(34) N. G. Cancline, Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade (2ª ed.),São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2003, p. 205.

(35) Ibid., p. 219.

(36) B. Neves apud R. A. de Melo, “Noção de “arte popular” – uma crítica antropológica”, em Brasil. Ministério da Cultura, 7 brasileiros e seu universo: artes, ofícios, origens e permanências, Brasília, DF, 197, p.134.

(37) Imagens condensadas: arte, memória e imaginação em Juazeiro do Norte - Tese de doutorado apresentado pela professora Rosilene Alves Melo (2013) na UFRJ no departamento de Ciências Sociais, no curso de Antropologia Cultural. “A ideia desenvolvida no trabalho de viés antropológico é pensar acerca dos objetos (esculturas) na percepção da qualidade que possuem de gerar poderosas imagens e agência”.

(38) Ibid., p.134.

(39) F. Maxado apud J. Temóteo, op. cit., p. 67. “O velho” ou Francorli Dão ou F.C.L, pseudônimos e assinaturas de Francisco Cordeiro Lima, Juazeirense que trabalhou na Lira Nordestina (Ibid., p. 45). Também xilógrafo autor de vários álbuns e capas de cordéis.

(40) S. Diniz. Juazeiro do Norte, 24 de Maio de 2014 – Entrevista.

(41) F. Houtart, Mercado e Religião, São Paulo, Cia dos Livros, 2002, p. 109.

(42) S. Diniz. Juazeiro do Norte, 24 de Maio de 2014 – Entrevista.

(43) J. Coli, Vincent Van Gogh, São Paulo, Brasiliense, 1985.

(44) Ibid., p. 80. A Cidade de Arles fica a alguns quilômetros de Alpilles ou Alpines, lá fica situado o hospício de St. Rémy onde Van Gogh pede para ser internado. Em uma de suas cartas endereçada a Théo em 1889, Van Gogh a descreve como “um pedaço do céu azul-verde com nuvenzinha branca e violeta”. Coli escreve que o artista irá dividir seu tempo entre sua paixão pela leitura e uma frenética atividade pictural, produzindo uma média de um quadro cada dois dias.

(45) C. Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p.13.

(46) Instrumento utilizado pelo xilógrafo para escrever na madeira.

(47) S. Diniz. Juazeiro do Norte, 24 de Maio de 2014 – Entrevista.

(48) Ibid., p. 121 - 138.

(49) Giorgio Agamben é filósofo, professor da Universidade de Veneza e do Colégio Internacional de Filosofia em Paris, autor de diversos livros, entre eles Image et memorie e Stanze. A tradução desse dossiê foi realizada a partir da versão francesa publicada pela Editora Desclée de Brouwer em 2004, no livro Image et mémoire, écrits sur l’image, la danse et le cinéma.

(50) Um dos mais importantes xilógrafos de Juazeiro do Norte/CE.

(51) Distribuído pela Igreja Presbiteriana da Inglaterra aos participantes do evento “A Teologia Presbiteriana e a democracia participativa na África em 1988”. Conforme nos foi informado por Stênio, durante a sua estadia na Alemanha, o Seminário de Teologia Presbiteriano na Inglaterra, ao tomar conhecimento do seu trabalho principalmente através do álbum Via Sacra, solicitou a sua permissão e pagaram pelos direitos autorais em libras esterlinas, a imagem XII Via Sacra na composição do manual do evento.